30 abril 2008

As duas torres

Após algum tempo, o moço pergunta à figura envelhecida, que lhe acompanhava ao lado na viagem, o que era o imponente maciço rochoso que se erguia além, no outro lado do vale que mirava. Com o peso de muitas primaveras sobre os ombros e outras guerras, a resposta saiu leve e decidida: "É a igreja de São Vicente de Fora". Enquanto o jovem digeria a informação, olhando as duas torres que era possível ver daquele local, o outro, já menos jovem, voltava-se de novo para as casas típicas, observando, pensativo, o cal que encobre a argamassa de séculos de histórias. Suspira.

"Pois eu vejo aquelas duas torres de minha casa" soltou o rapaz. Dando azo à conversa, é lhe respondido que foi construída durante o reinado dos Filipes de Espanha. Era muito avançada para a época, uma vez que já incorporava um sistema construtivo anti-sísmico.

Sem saber como arrematar a conversa, o jovem disse: "Pois, alguma coisa de jeito tinham de fazer...". A resposta foi espontânea: "Sim, nem tudo podia ser mau!"

Riram-se.

28 abril 2008

O Amor

Não acreditava no amor. Muito menos acreditava no amor à primeira vista. Até que um dia...

Apaixonei-me, à primeira vista... imagine-se! E confirmo, o amor é vermelho por fora, doce por dentro, derrete-se na boca e dá vontade de trincar, comer e ainda podemos ficar a chorar por mais.




falling in love for a Kit Kat machine

27 abril 2008

Chamem uma ambulância

"Na vida, nós temos sempre dois caminhos em qualquer altura. Glup! Podemos sempre escolher um caminho, daqueles dois caminhos. Glup! Mas ambos os caminhos estão correctos. Mas escolhemos apenas um... Glup! Só que um está mais correcto que o outro! Mas só podemos escolher um... Mas estão os dois correctos!... Glup!"

Cinco minutos depois adormeceu sobre o seu próprio leito enquanto o seu fígado (o pouco que lhe restava) fermentou até a cevada não indicar outro caminho senão o do hospital. Perderamos outro grande sábio.

25 abril 2008

Saramago, Liberdade e Jardel

Por falar em Saramago, homem pelo qual não nutro propriamente uma alegre simpatia, unicamente por questões ideológicas, contudo não deixa de merecer o meu profundo e sincero respeito. Mas não duvido que muitos façam a habitual expressão de desagrado ou apreensão quando ouvem seu nome, por puro desconhecimento de causa. É normal manifestarmos aversão ao desconhecido, pelo que sugiro que se informem (e bem) antes de torcerem o nariz e cuspirem sobre a calçada, não apenas em relação ao autor de Memorial do Convento, mas sim em relação a tudo.

Em oposição, é imaturo e inconsequente bater palmas e fazer vénia ao que nos parece bem, julgamos estar ou ser de bem, ainda que convictos lá no âmago da nossa consciência, sem antes estarmos informados (e bem) sobre a verdadeira natureza do que aplaudimos.

Isto tudo para dizer que tropecei numas palavras de Saramago que me deixaram a pensar.

"Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute."

"Se começássemos a dizer claramente que a democracia é uma piada, um engano, uma fachada, uma falácia e uma mentira, talvez pudéssemos nos entender melhor."

Suponho que Saramago tenha uma visão mais obscura sobre o funcionamento da nossa sociedade, ainda que sustentada numa lógica plausível. Parto do princípio que estas questões são incompreensíveis aos leigos, por inércia do quotidiano, por falta de sensibilidade, podendo-lhes soar a teorias da conspiração ou meras fantasias e ficções. Daí que ainda hoje, como há 34 anos atrás em 1974, a educação, a cultura, a informação, sejam pilares fundamentais para a vida, no seu papel como agentes para o esclarecimento e combate à ignorância -- a maior das pobrezas.

Uma introdução à sociologia e antropologia revela de forma mais objectiva os mecanismos e os processos que actuam no funcionamento da sociedade. O indivíduo, localizado e inserido, é alvo de inúmeras forças e conduzido por «instituições». Não deixa de ser participativo e todos desempenham um papel, mas a liberdade é diminuída, até certo ponto. Uma maior consciência destes factos e dinâmicas despertam-nos para a realidade, de uma forma mais esclarecida. Se encetarmos numa análise mais profunda, a democracia, esse sagrado bem que tomamos como adquirido e inalienável, toma contornos menos claros.

Mas, como Jardel disse e muito bem, na sua passagem pelo futebol nacional:

"O difícil, como vocês sabem, não é fácil."

24 abril 2008

Uma questão de linguagem

Muito concentrado, o jovem inocente desenhava a fronha do Fernando Pessoa, com um interesse claramente interessado. Sim, é redundante, mas verdadeiro. Ao riscar (alguns dirão desenhar) o nariz metálico do poeta imortalizado por compor A Mensagem (e outras tantas), no bloco barato que repousava, sobre as suas pernas, com a sua 0.2 preta, é interrompido por um vulto que lhe esconde o objecto do desenho.

Ouve-se algo pouco audível, sim, outra redundância (este post terá várias redundâncias). Era um estranho que lhe dirigia a palavra. Estupefacto, o jovem perguntou muito calmamente ao parvalhão, que raio é que ele queria, afinal o Fernando já devia estar farto de fazer pose para o desenho. Sem perder tempo, o vadio mirabolante esboça um sorriso sarcástico e confirma que o jovem falava português, escrevia português, pensava português e até desenhava um português (falecido, mas também conta). Então pediu-lhe uns «trocos» para comer um bolo. Aborrecido com a falta de delicadeza, o jovem diz que não tem moedas consigo. O apreciador de bolos afasta-se com um sincero agradecimento agradecido mas pouco sincero e dirige-se a uns alemães que se encontravam na mesa ao lado. Estes cospem-lhe uns ich nehme nicht wahr e uns auf wiedersehen, ao que o personagem não oferece resistência e parte.

Fernando Pessoa, exausto, permanece no lugar, gélido como um defunto. Todavia, o rapaz com a caneta fica inquieto. Mais uns traços aqui e ali, um bigode acolá, uma cera nos ouvidos, uns lábios queimados pelo café... e surge outro artista, mas que artista!

Uma prateleira com objectos que se assemelhavam a chocolates da Páscoa, importados da Somália (fazem chocolate lá?), despachados com um ano de atraso por um transitário marroquino, queimados ao Sol de Marrocos. É a visão que surge à frente do jovem, português por sinal. Uma redundância: moedas para comer. Não, moedas para comprar algo para comer, para ser exacto. Como dominava o inglês, o jovem tentou e arriscou -- respondeu à turista:

-- Sorry but I don't understand...

Surpresa!

-- Yes, yes! Nice drawing sir! You see these objects, I do these handcrafts by myself, and... do you have any coin? Anything?

O jovem nunca mais falou inglês em público. A linguagem gestual resolvia o problema, mais rapidamente.

22 abril 2008

Pão


Lisboa, algures entre o Pão e a Côdea -- No miolo de uma questão.


Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.

21 abril 2008

Exagero

Era uma vez o capuchinho vermelho. Foi a casa da avó. O lobo mau perseguiu-a. O lobo mau devorou o capuchinho e a sua avó. O caçador apanhou o lobo e salvou o capuchinho e a avó. O lobo mau foi desta para melhor.

-- Não! Que facada infligis na língua portuguesa! Intolerável...

-- Ok...

Outrora, em terras longínquas, para além do horizonte que a vista alcança, oculto na fronteira do real com a fantasia, o capuchinho vermelho, dócil e frágil, pisava a terra de um bosque áureo, por entre pedras e erva, caminhando tranquilamente ao som da folhagem que dança ao sabor da brisa fresca que se faz sentir. Fora-lhe pedido que visitasse a avó, uma senhora gentil e amável, sempre com um sorriso disponível, solto espontaneamente, como que um reflexo anatómico involuntário. Assim, e com uma alegria sincera e pequena saudade, o capuchinho partiu para a clareira, em busca do calor dos braços da sua avó, que aguardava impaciente pela sua chegada, preocupada. Pelo caminho, o carnívoro implacável acossou o capuchinho. A sua persistência revelou-se inexorável, tendo tirado partido das sombras e das silhuetas das inocentes árvores, para se aproximar do pobre capuchinho, que ignorava o perigo que espreitava. Tendo conduzido o lobo, sem o saber, o pequeno capuchinho bate à porta, a qual se abre num instante, como relâmpago que se precipita sobre a terra. A visão de um bolo delicioso de chocolate é imediatamente interrompida com o assalto enérgico que o lobo lança sobre a avó e o capuchinho. Não tendo qualquer hipótese, cedem ao ataque, inofensivas e impotentes. Um caçador apercebe-se da situação e intervém repentinamente, desarmando o lobo da sua capacidade ofensiva com uma resposta agressiva mas cirúrgica. Inconsciente, o lobo não reage à operação que o caçador inicia, abrindo-lhe o estômago e soltando, assim, as duas vítimas. Após isto, coloca pesadas rochas na sua barriga e deixa-o à beira de um lago. Ao acordar, transtornado, o lobo procura saciar a sua sede, mas afoga-se ao cair sobre a água, com o peso das pedras.

-- Ah, mas continua péssimo! Faltam parágrafos! Algumas vírgulas! Sintaxe questionável! Falta estrutura formal!... A
cacofonia conceptual de um léxico pseudo-sinestésico roça um funesto atentado à composição inicial!

-- Pois, há de ficar para depois... primeiro vou curar esta gripe!

20 abril 2008

Pausa Dominical

"O quê? Ainda agora começou e já com pausas?! Mau..." acusar-me-ão prontamente da mais tórrida malandrice. Ou talvez não, se compreenderem o seguinte: malandrice é aqui estar. E como sou fiel seguidor de postulados sobre a malandrice, Domingo é dia de descanso.

Deixo-vos aqui o link de um blogue curioso. Se o tempo não permitir, ou as crianças preferirem ficar em casa a jogar Playstation ao invés de reforçar ao Sol a concentração de vitamina D, podem sempre divertir-se com os fantásticos erros de designers e editores de imagem geniais, denunciados no PhotoshopDisasters. É também uma boa desculpa para interromper o trabalho, quer seja limpar a cozinha, quer seja elaborar o plano de emergência de um centro comercial -- é sempre uma boa desculpa. Deleitem-se.

19 abril 2008

O velho do Restelo

Pousou o copo. Respirou fundo e, com umas bochechas avermelhadas, desabafou. Foi o empregado do café que levou com o latim amordaçado daquele revoltado. O Governo está mal, o país está mal, está tudo mal, como nunca esteve, pior é impossível. O que dizia o homem? Nada de novo, pois o Governo nunca age bem. "O Governo está a fazer mal! A fazer leis que são proibidas!". Volta a elevar o copo, entorna e pousa-o. Afasta a garrafa um pouco.

Olhando para o tecto, ou para o relógio, numa dialéctica ansiosa, o empregado respondia com maior desabafo: "O que é que este Governo está a fazer? Está a fazer o que era preciso ter feito à trinta anos!". Trinta anos, mas daqueles "grandes", com 900 anos de comprimento, talvez.

Mas o freguês não se dá por vencido e atira novamente: "Nunca a mocidade andou assim!!! A chamar por "tu" aos pais... A sair de casa sem dizer nada! A aparecer por aí de qualquer maneira...". Rindo-se, o empregado acha que o problema, o problema maior, não é esse.

Com falta de assunto, provavelmente, o intrépido teceu insinuações sobre a orientação sexual do primeiro-ministro, mas foi calado de imediato pelo empregado, dizendo que ele nada tinha haver com isso.

Conclusão: o velho bebia Super Bock.

18 abril 2008

#1

Um dia, quando abrir um iogurte light, despachar um peixe fedorento para o congelador do frigorífico (por uma razão artística «qualquer») e chover a cântaros em Lisboa (para gáudio dos meteorologistas), vou criar um blogue, com um título peculiar, mas improvável.

Hoje é o dia.

À parte a euforia dos saquinhos de açúcar poéticos da Nicola, fica uma grande dor de costas que me vai catapultar daqui para fora. Ah, fui avisado de que não teria tempo para aqui regressar, mas pelo menos a primeira posta já cá canta. Tenho dito.